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A roubalheira

por Putz da Vida

Por que será que neste nosso país a roubalheira é tão generalizada? Será que é por causa da impunidade? Serão as leis, que protegem em demasia os delinquentes? Fala-se o tempo inteiro nisso, mas a coisa não muda.

Quando eu tinha uns 11 ou 12 anos, costumava ir, aos domingos pela manhã, a um cinema chamado Santa Helena, que ficava na Praça da Sé. Ia geralmente sozinho, pois os pais dos meus amigos não os deixavam ir – era perigoso, segundo eles. Eu ia de bonde aberto, que subia a Avenida Angélica, pegava a Avenida Paulista, a Rua da Liberdade e a Praça da Sé, onde eu descia. O bonde tinha bancos, mas eu gostava mesmo era de ir ao estribo.

Era proibido para crianças mas, no domingo, não havia guardas (policiais municipais). O bonde tinha um motorneiro, que o dirigia e um cobrador, que ficava circulando pelos estribos, cobrando dos passageiros. Ele registrava cada pagamento puxando uma das alças de couro penduradas pelo bonde. Não me passava despercebido que o cobrador registrava muito menos do que cobrava. Eu demorei a compreender por que ele fazia aquilo. Com o tempo também aprendi que, ao comprar minha entrada no cinema, dava sempre o dinheiro certo, pois a bilheteira me dava o troco errado e quando eu reclamava insistia que o errado era eu. A sessão começava às 10 horas e ia até cerca de meio-dia.

Eram capítulos de vários seriados: Tarzan, O Vingador, Charlie Chan, Rim-Tim-Tim e outros. Eu saia de lá maravilhado e ansioso pelo próximo domingo, quando seria revelado como meus heróis tinham escapado das emboscadas, explosões, flechadas mortais, etc. De vez em quando, minha mãe me deixava almoçar fora e eu, saindo do cinema, caminhava até a Avenida Ipiranga e me deliciava comendo na Salada Paulista. Lá também, eu tinha que ficar esperto com o troco.

Nunca esqueci as fisionomias do cobrador e da bilheteira, que eu encontrei por bastante tempo. Eu pensava: será que eles são ladrões ou aquilo não era roubar? No fundo eu sabia que não era certo. Não comentava nada em casa, para não correr o risco de ser proibido de fazer meu adorado programa domingueiro.

Minhas lembranças me afirmam que esses comportamentos eram quase generalizados e vejo que continuaram através dos anos e que tudo continua na mesma. O que lentamente vem mudando são as técnicas de enganar. Você ia ao armazém e precisava ficar atento ao que o dono escrevia na sua caderneta, que a gente pagava no fim do mês. Minha mãe ia comprar tecido e o metro do lojista tinha 95 centímetros. Na balança do feirante, o quilo tinha 900 gramas e assim por diante. Hoje, os institutos de defesa do consumidor têm agendas lotadas de golpes e desonestidade de todo tipo. Antes que alguém saia em defesa da pátria, eu posso afirmar que nos países do primeiro mundo não é assim. É lógico que existem ladrões, mas, quando são pegos, vão para a cadeia.

Sinto-me envergonhado, mas o espírito de enganar o próximo, de tentar levar vantagem sempre e a desonestidade generalizada parecem fazer parte do nosso caráter nacional e não começou quando eu tinha dez anos, não. Vem de muito mais longe…

 

Putz da Vida é Engenheiro Civil e Eletricista, pós-graduado em Administração de Empresas com especialização nos EUA. Após um breve período na construção civil, trabalhou durante mais de 40 anos como executivo. Aposentado, faz consultorias eventuais e estuda música.

Putz da Vida escreve aos domingos aqui no Universo Jatobá.

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