Um pouco além da esquina
Dia desses escrevi no meu Facebook: “Essa joia rara há 16 anos e mais 1 dia vem, pacientemente, dia após dia, me ensinando a ser avô”. Nada de mais, outros já postaram algo semelhante, outros se tornaram avô antes de mim.
Acontece que essa frase me transportou através do tempo e do espaço e me fez chegar a outra pessoa que, pacientemente, dia após dia, me ensinou a ser pai. E uma das formas que essa pessoa encontrou, de propósito ou por acaso – sabe-se lá se existe acaso – para desenvolver meu aprendizado foi ir viver no exterior. Por muitos anos. Um belo dia recebo um telefonema no meio da noite:
– Alô!
– Pai!
No meu corpo quente da cama instalou-se um gelo no peito:
– O que foi? Fala!
– Pai!
Silêncio
– Pai, estou grávida…
Nesse instante iniciou-se um processo dentro de mim. Claro, alegria, euforia, excitação. Claro, novidade, parabéns, parabéns, comemorações… Mas tudo isso era parte de ser pai. O processo que se iniciava e do qual eu não tinha a mínima noção, era outro.
Os meses passaram, até que o meio da noite de outro dia chegou. O telefone:
– Alô!
– Pai!
– O que foi? Fala!
– Ela vai nascer hoje!
No meu corpo quente da cama disparou um coração.
– Estou indo!
Dois dias para conseguir uma passagem, vinte e quatro horas de uma viagem percorrendo três continentes, porque quando minha filha resolve me ensinar a ser pai e para isso resolve ir morar no exterior, ela vai morar muito no exterior, tipo assim… na China.
Passar 24 horas dentro de aviões intercalando com mais algumas horas em aeroportos é tarefa pra deixar qualquer um desnorteado; chegar, finalmente, em algum lugar da China, não melhora em nada. Onde buscar sua bagagem? Como sair do aeroporto? Onde se pega táxi?
Como se comunicar, explicar, perguntar? Como confiar nessas pessoas que não olham nos olhos, sempre dizem sim, independentemente de ser de fato sim ou não?
Centro da cidade. Aqui se fala inglês, o que não muda o fato de que ninguém sequer diminui o passo para lhe dar uma informação, melhor dizendo, para ouvir sua pergunta. Pessoas, pessoas, pessoas aos milhares, apressados, focados em para onde estão indo e nunca no que está à volta. Pessoas, carros, pessoas, carros, ônibus, carros, barulho, pessoas, pessoas… Pego um barco para cruzar a baía e ir ao local onde minha filha vive. Milhares de barcos com milhares de milhares de pessoas cruzam a baía. Pessoas, pessoas… ah, telefones celulares!
Na ilha não há carros, só uma linha circular de ônibus e carrinhos elétricos tipo “de golfe” para aqueles que podem. Pracinha, condomínio, quatro andares pela escada arrastando minha bagagem. Entro. Tem uma aura de silêncio no apartamento. Me indicam o andar de cima.
Silêncio. Me apontam a porta. Silêncio. Empurro devagar. Silêncio. Escuro. Silêncio.
Atrás da porta, devagar, começo a identificar um ruído. Uma cadeira de balanço balança
devagar; ouço o movimento suave e repetido. Foco na direção e meus olhos começam a se acostumar à escuridão. E aí então, pouco a pouco, mas muito pouco a pouco mesmo, começa a se materializar na minha frente algo que nunca imaginei nem supus existir; Milagre, milagre!
Saindo das brumas vem a imagem da minha filha, sentada na poltrona de balanço, amamentando aquele pequeno ser, aquele pequeno milagre… aquele pequeno milagre? Não, aquele enooooorme milagre na minha vida, aquela coisa imensa que se abriu dentro de mim, que explodiu no meu coração, me arrancou o fôlego, extraiu minhas lágrimas há tanto tempo sonegadas…
Ali, naquele momento começou uma nova escola, um novo aprendizado, uma surpresa após surpresa sem cessar; não do lado de fora, mas dentro de mim. Tanta coisa aprendi de mim nesses dezesseis anos e mais um dia… Obrigado, minha neta; essa, fico lhe devendo! Nunca mais serei o mesmo. Obrigado, minha filha, sem você e sua escola nada disso seria possível. Nunca mais fui o mesmo.
Pagan Senior é engenheiro civil, com atuação institucional na área de Coleta Seletiva e Reciclagem na Cidade de São Paulo. É também ator diletante.
Pagan Senior escreve às quintas-feiras aqui no Universo Jatobá.
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