Problemas de língua
Como sou filho de imigrantes, sempre convivi com pessoas lutando para dominar a língua de seu país de adoção. O português tem particularidades difíceis de se aprender, muitas vezes contrariando a própria lógica. Minha mãe e tias, que chegaram ao Brasil ainda crianças, sempre falaram português com perfeição; já seus maridos, imigrados adultos, sempre carregaram essa dificuldade.
Conto a história de um tio meu que tinha uma pequena loja de roupas masculinas e femininas, guarda-chuvas e o que mais fosse oportuno oferecer no bairro de periferia onde vivíamos. Falava bem português, mesmo porque antes da loja tinha sido caixeiro viajante e percorrera o interior de São Paulo e Minas, falava com muita gente e conhecia bem as pessoas e seus costumes. Mas apanhava com certos detalhes.
O cliente entrava em sua loja, era atendido, escolhia, escolhia e finalmente comprava. Ótimo. Mas aí a funcionária dizia:
– O senhor não quer mais alguma coisa?
Pronto, isso azedava o dia do meu tio.
– Como? Você está DIZENDO pra ele que ele não quer mais nada; Tem que convidá-lo a querer mais alguma coisa, tem que perguntar se ELE QUER mais alguma coisa, não se ELE NÃO QUER!!!
Essa inversão na língua portuguesa com a qual convivemos pacificamente o enlouquecia, não conseguia entender; na verdade se negava a aceitar, por mais que se explicasse a ele.
Aí o freguês dizia: “Posso ver aquele casaco lá?”.
Pronto, outro acesso de raiva. Entre dentes ele murmurava: “Ele quer ver, sei, sei, aqui não é exposição; não vai comprar nada, só quer ver, e com certeza também não vai pagar da terceira prestação em diante”!
Com a idade vieram as doenças. Para ele as coisas eram pão-pão queijo-queijo. Se você vai ao médico ele tem que curá-lo. E você paga por isso e tudo bem. Mas o avanço da medicina criou instâncias intermediárias entre você apresentar suas queixas e o médico curá-lo. São os exames. Ele simplesmente não entendia gastar uma fortuna em exames para no fim vir o resultado: Não deu nada! E toca fazer outros exames.
– Como? Ladrões! Me fazem gastar uma fortuna e não tenho nada? Pra que o exame?
Tinha uma outra particularidade; quando chegava a uma conclusão a respeito de algum assunto, sua conclusão passava a ser a verdade.
– Mas você tem certeza, alguém te falou ou mostrou isso?
Ao que ele arrematava:
– Lógico! O que mais pode ser? Lógico!
E não adiantava duvidar, ele repetia:
–Lógico!
Sua dificuldade de expressão parava por aí. Então entravam sua bondade, sua convicção e sua dedicação. Ajudar o próximo era uma missão que ele abraçava e não desgrudava. Sua dedicação aos seus, fossem muito próximos ou meramente pessoas que ele considerava dos seus, era sem limites. E tocava mesmo os corações mais duros. Explico.
À época de nossos anos de chumbo pessoas eram envolvidas e presas dentro de contextos nebulosos. Sem entrar aqui no mérito, uma filha sua ficou detida por diversas semanas enquanto se faziam investigações quanto ao envolvimento dela no que, de fato, se procurava. Pois todos os dias durante essas semanas ele, bem cedo, levava a refeição para ela e não ia embora enquanto não gastasse meia hora explicando ao delegado-chefe das investigações que sua filha era uma boa moça, ótima aluna, apreciada pelos professores e colegas. Não se cansou de levar cartas de professores, diretores, colegas, pais de colegas de todas as escolas que ela tinha frequentado desde o jardim de infância, atestando tais afirmativas.
Sua convicção interna e sua expressão bondosa e dedicada eram tais que acabaram amolecendo mesmo aquele duro agente da repressão. Poucos dias passados da soltura provisória da filha, ele recebeu um telefonema do próprio brucutu alertando-o de que ela seria procurada em seguida e que ele aconselhava que ela sumisse por uns tempos.
A pergunta que me fica é: se ele soubesse mais gramática, mas tivesse menos coração, será que sua filha teria se livrado de encrencas maiores e poderia ter tido o brilhante percurso que fez até hoje?
Pagan Senior é engenheiro civil, com atuação institucional na área de Coleta Seletiva e Reciclagem na Cidade de São Paulo. É também ator diletante.
Pagan Senior escreve às quintas-feiras aqui no Universo Jatobá.
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