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O primeiro dia de um homem

por Pagan Senior

Todo homem tem seu primeiro dia. Comigo não foi diferente. O encontro tinha sido marcado para as 7 em ponto e lá estava eu, carro estacionado em frente ao número 188, conforme combinado. Só que chovia; mas não era uma chuva qualquer, chovia como se Ele estivesse pensando seriamente em quebrar a promessa feita a Noé de nunca mais fazer “aquilo”. Sair do carro? Impensável! Como eu tinha chegado adiantado, tinha certeza que poderia controlar a entrada de quem chegasse dali mesmo. Após meia hora de luta com os vidros embaçados, resolvi sair de dentro da toca já que a chuva diminuira para nível de simples temporal. Foi só abrir a porta e tomei um banho não só da chuva, mas também do arrebentar da onda que se formou do encontro do “ribeirão da sarjeta” versus roda do carro. Empapado até a alma empurrei a porta do 188  e entrei. Lama se entranhava nos sulcos das solas dos sapatos de modo que após três passos eu simplesmente patinava.

Quem iria me conduzir neste meu “primeiro dia” não apareceu e o Sr. Manoel me recepcionou benevolente. “Não, com essa chuva toda ele não vem e ninguém trabalha, mas se o senhor quiser subir para dar uma verificada, eu o acompanho”.

Quem era eu para recusar qualquer convite? Lá fui atrás do “seu” Manoel escada acima. Eram 23 andares. À medida que eu subia, a desordem aumentava, os obstáculos aumentavam, o frio aumentava, o cansaço aumentava e a cara de divertimento do “seu” Manoel aumentava. Só diminuíam meu fôlego, minha confiança, meu oxigênio no sangue e minha lucidez. Seu Manoel subia ritmado, eu subia afobado. Ele falava devagar, sem olhar para trás; eu só dava graças por sobreviver mais uns degraus.

Passar pelos três últimos andares era como atravessar uma mata fechada, tal a quantidade de escoras, ganchos, tubos e tábuas que eu precisava evitar e esquivar. O último lance era todo de madeira, milhares de ferros espalhados, mas ordenados, tubos de ferro preto cruzando o chão por todos os lados.  Eu estava em cima de uma forma pronta para ser cheia com concreto, no 23ª andar de um prédio em construção. Seu Manoel catou uma folha de desenho toda impregnada de ferrugem e me colocou nas mãos;  me olhou interrogativo. E agora, como eu sairia dessa? Onde estava o engenheiro para me dar uma mínima noção do que fazer, para onde olhar, contar o quê, medir o quê? Desdobrei o desenho que quase me foi arrancado das mãos pela rajada gelada. Impossível mantê-lo aberto. Aliás, para que mesmo eu iria abri-lo?  Meu olhar perdido estabeleceu a hierarquia entre nós para o resto da vida: ele sempre iria ser o que sabe, eu sempre iria ser o que deveria saber, mas precisava aprender primeiro.

Seu Manoel era um homem generoso. Depois de me deixar quase uma hora andando de um lado para outro a 75 metros de altura, tropeçando em pontas de ferro sob aquela chuva persistente, um vento absurdo que me congelava completamente todos os poros, foi tomada de uma piedade repentina ao perceber meus lábios arroxeados e meus olhos injetados:

– Olha, acho que preciso lhe ensinar um segredo; vamos descer.

Qualquer coisa que me tirasse daquela situação era bem vinda. Fui seguindo atrás do seu Manoel, descemos os 23 andares, passamos no escritório da obra para ele pegar a carteira, saímos e fomos ao bar da esquina:

– Ó Seu Valério, vê dois cafés aqui pra nóis. Mas pro moço aqui é batizado. Ele é dos valentes, encarou de frente e ainda tá inteiro!

Seu Valério não se fez de rogado. Meio copo de café, meio de bagaceira:

– Vamo, rapá, é de um gole só senão não faz efeito. Mais um pouco essa tua boca gangrena de frio, sô!

Eu também não me fiz de rogado. Aquilo desceu rasgando e depois foi esquentando. À medida que esquentava, fui amolecendo, amolecendo, sentindo um quentinho dentro, um distanciamento de tudo, os sons indistintos cada vez mais longe… tem sempre uma primeira vez, já não era sem tempo, eu já tinha 19 anos!

 

Pagan Senior é engenheiro civil, com atuação institucional na área de Coleta Seletiva e Reciclagem na Cidade de São Paulo. É também ator diletante.

Pagan Senior escreve às quintas-feiras aqui no Universo Jatobá.

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