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Noite de terror

por Pagan Senior

O apartamento era pequeno; dois quartos. Mas os parentes, quando vinham, tinham que ser acomodados; então nada mais natural do que me passarem para a cama de meu irmão. Tudo bem, não residia aí o problema.

Éramos absolutamente tarados por jogo de botão. Não existia, como existe hoje, jogo para se comprar com uniforme do time de coração. Não. Cada botão era o resultado de uma conquista. Jogadores eram vidro de relógio, ficha de cassino lixada de um lado, botão de capa de chuva, calota de coco raspada até ficar lisa. Naturalmente os mais altos eram os beques (hoje zagueiros). Os mais baixinhos, ágeis, eram os atacantes. A bola? Variava: podia ser de miolo de pão ou um dado pequeno. E jogávamos no chão, no espaço entre nossas camas. E é aí que residia o problema.

Meus pais conversavam na sala com o parente da vez e nós no quarto irradiando furiosamente o jogo do nosso campeonato. Lá pelas tantas vinha a ordem: “- Acabou, acabou, agora é dormir; nem Mas nem Meio Mas, dormiiiiir!!!!”.

Não tinha jeito, agora era definitivo. Deixávamos o jogo exatamente como estava, cada jogador em sua posição e iríamos continuar na manhã seguinte antes da mãe acordar e nos chamar para irmos à escola. Esse era nosso sonho. A realidade era diferente.

Cada visitante tinha sua especialidade: O avô, que andava arrastando os pés, entrava pé ante pé para não nos acordar e não tinha como evitar de chutar a trave para longe, quando não a pisava impiedosamente transformando-a num aleijão de trave.

Um tio, muito zeloso, sempre se dava ao trabalho de – Valhamedeusquanta ignorância!!! – recolher todos os jogadores e colocar de volta na caixinha!!! E ainda por cima de manhã, com a cara mais lavada do mundo, perguntava: “- Faltou algum?”.

Mas noite de terror foi com aquele outro tio. Homem sério, muito quieto – dizia-se que era muito culto – esse tio veio certa vez muito gripado. Como sempre, tínhamos deixado nosso jogo no meio. A partida estava empatada, emocionante; era uma final e por nada deste mundo concordaríamos em interrompê-la. Mas aquele “…nem mas nem meio mas!..” não deixou margem a dúvidas. E lá fomos nós para a cama do meu irmão. E acabamos por dormir, como era de se esperar.

Alta madrugada, sinto um cutucão e meu irmão, com a voz assustadíssima: “- Não é possível, ele está cuspindo nos jogadores!!”.

O tio tossia, tossia, depois raspava longamente o fundo dos pulmões, tomava um impulso, debruçava-se sobre nosso campo de jogo e… escarrava!!!

Mesmo sem acordar rememorei: “- Justo em cima do Luizinho e do Hélvio! Não é possível, não pode ser!”. Meu irmão: “- Vai lá, recolhe os times!”. E eu: “Hein? Como? Tá tudo cuspido, o Leandro deve ter morrido afogado. Eu é que não vou botar a mão nessa nojeira!”.

E nos quedamos ambos deitados, olhando para o teto, aterrorizados e impotentes, só imaginando como estariam nossos heróis depois daquela noite, enquanto o tio tossia, recolhia tudo do fundo do pulmão e…cuspia, escarrava, sei lá que nome que tinha aquele terror.

Como dormir dali em diante? Estávamos derrotados, absolutamente derrotados. E a madrugada foi se transformando em aurora e um pouco de luz foi se filtrando pela veneziana.

Mais algum tempo era dia. Minha mãe entrou no quarto. “– Uai! Acordados?” E meu irmão: “- Peraí mãe, cuidado onde pisa. A senhora nem imagina o que aconteceu!”.

Ela acendeu a luz da nossa cabeceira e olhei desanimado para o “campo”. Não vi nada de anormal; as traves no lugar, a bola no lugar, Hélvio e Luizinho em seus lugares; Leandro brilhava sequinho da silva. Olhamos para o tio. Ele dormia de boca aberta, roncando suavemente. Na mão, um lenço enorme, do tamanho de uma fralda.

Os jogadores estavam salvos, mas foi uma noite de terror.

 

Pagan Senior é engenheiro civil, com atuação institucional na área de Coleta Seletiva e Reciclagem na Cidade de São Paulo. É também ator diletante.

Pagan Senior escreve às quintas-feiras aqui no Universo Jatobá.

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