Dito e feito!!!
Há tempo viúva, morava sozinha e preservava sua independência até o limite da sanidade. Era de uma crueza desconcertante. Falava o que queria, como queria, quando queria e para quem queria. E só falava quando queria. Quem não gostasse que não ouvisse, tanto lhe fazia.
Quando lhe morreu um filho – o predileto – não teve dúvidas em declarar ao outro:
– Morreu o filho errado.
Este não se abalava e cumpria seu papel de filho. Ao seu modo cuidava da mãe, providenciava o que lhe parecia que ela necessitasse. Trouxe-lhe uma televisão – ainda em preto e branco – ao que lhe retorquiu a velha senhora:
– Não precisava, morro logo logo”. Mas aceitou.
Mais tarde contrataram-lhe uma mocinha para fazer companhia. Mas era ela a cuidar e não a ser cuidada. A menina era bonitinha e despertou o assanhamento dos garotos da vizinhança. “Sem querer” deixavam cair a bola no quintal da velha senhora e aos gritos pediam “ – Joga a bola, joga a bola!” só para ver a mocinha no portão.
Dona Alcinda não era de fazer vista grossa a nada. Na terceira vez apareceu na janela do andar de cima, espingarda em punho:
– Ó gajo, desaparece daqui senão lhe encho de chumbo!
A história correu pela família:
– Vó, como é que a senhora faz uma coisa dessas! Se acertar o moleque pode até ser presa!. Impassível, afirmou:
– Prá fazer o que eu faço, faço na prisão mesmo!
– ???? o quê?
– Crochê, oras, faço em qualquer lugar! Esses pirralhos que não me apoquentem!
A cegueira avançava devagar. Quando lhe trouxeram a TV a cores quase sorriu, mas de ironia.
– Agora que já não enxergo me trazem televisão colorida. Pra quê se já estou morrendo? Nem vai dar tempo de aprender esse tal de controle remoto!. Mas aceitou.
Mudou-se para o andar térreo do sobrado, que as pernas penavam na escada. Cozinhava sozinha. Para saber se o fogão estava aceso, passava a mão para perceber a quentura. Um belo dia declarou:
– Vou operar a catarata; se não funcionar morro em seguida, que não quero ficar cega feito uma alma penada. Além do mais, já não faz muita diferença!
Operou e melhorou. Mas por pouco tempo; de novo a cegueira a perseguia. Decidiu morrer, mas o problema era que não sofria de nada, tinha a chamada saúde de ferro. A família assistia
entre assustada e descrente os projetos dela. Sempre fora assim, não precisavam se preocupar.
Belo dia veio o alerta. Dona Alcinda tivera um troço. Hospital, UTI, médicos, um alvoroço. Todos correram. Encontraram-na já bem. Quer dizer, ao seu estilo. Às perguntas de como estava, as respostas secas de sempre. Aos agrados dos parentes, aquele olhar profundo sem uma palavra. Aos consolos e garantias de que amanhã estaria tudo bem, garantia de volta:
– Nada disso. Morro amanhã!
Os médicos garantiam que estava tudo bem, que a crise passara e não deixaria sequela. Dona Alcinda iria para casa dia seguinte, Foi o que sua neta lhe garantiu, segurando-lhe a mão.
Ela olhou firme. Enigmática:
– Hmmmm, sei!
– É sim, o doutor disse!
Mais enigmática.
– Não conte com isso!
– Imagina, vó, o doutor garantiu!
– Hmmm!
Durante a noite, a notícia: Dona Almerinda morreu.
Êta mulher determinada!!!
Pagan Senior é engenheiro civil, com atuação institucional na área de Coleta Seletiva e Reciclagem na Cidade de São Paulo. É também ator diletante.
Pagan Senior escreve às quintas-feiras aqui no Universo Jatobá.
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