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Circular – Avenida

por Pagan Senior

Eu morava na Barra Funda e estudava na região da Vila Mariana. Tomava o ônibus próximo à Praça Marechal de Deodoro e descia no ponto onde a Bernardino de Campos se bifurcava com a Rua Cubatão. Não sei se ainda existe, mas meu ônibus se chamava Circular Avenida e o usei ao longo de três anos, tempo que demorou meu curso colegial. Era circular porque não era uma linha em que o ônibus ia e depois voltava. Não, era circular, ou seja, ele seguia em frente e acabava voltando ao mesmo lugar. Verdade que havia um Circular em um sentido e outro no sentido contrário, que era o que eu usava na volta.

Mas não importa; tudo isso para dizer que, como ele não tinha o chamado ponto final a partir do qual ele voltaria, havia uma expectativa de que ele não pararia nunca. Mas não era bem assim: Em determinado lugar ele parava, o motorista e o cobrador desciam e conversavam com o fiscal, que anotava sei lá o que ele tinha para anotar. E isso normalmente tomava uns 4 ou 5 minutos, o tempo de um cigarrinho. Nesse meio tempo o motor ficava ligado ronronando.

Eu já estava acostumado. Ficava distraído estudando a matéria que devia ter estudado em casa, nem percebia direito o que passava. Havia um acordo tácito, ninguém se incomodava. A senhora do segundo banco, lenço envolvendo os cabelos brancos, não se incomodava. O casal só tinha olhos um para o outro e não se incomodava. Os quatro estudantes do banco do fundo conversavam animados e não se incomodavam. Para lá da roleta o homem quieto estava quieto e não se incomodava. O rapaz perto da porta do outro lado só tinha olhos para a morena do lado de cá e não se incomodava. Ah, o casal de mais idade, que já nem se olhavam mais, também não se incomodavam. O moço atrás do jornal aberto na folha de empregados procuram-se, nem pensar; não se incomodava.

Mas então, como foi que aconteceu?

Parece que o motorista levou um minutinho a mais do que o cigarrinho habitual, o menino do fundo resolveu puxar o cordão e a campainha de parada disparou. Lá fora três mãos levantaram: a do fiscal pedindo para esperar; a do motorista mostrando o cigarro e a do cobrador mostrando o dedo do meio. O rapaz dos classificados ficou bravo – acho que com o dedo do meio – e começou a puxar o cordão: prém, prém, prém sem parar. O cobrador ficou bravo e entrou gritando, o senhor de bigodes grisalhos se incomodou e também puxou a campainha, a senhora da sacola gritou para o cobrador calar a boca, o fiscal começou a rir, os outros meninos do fundo se penduraram de vez uns no cordão da campainha outros nos corrimãos do teto, o motorista gritou que se continuasse assim não ia voltar nunca, a senhora do segundo banco se levantou e foi até a porta e gritou com o motorista, o casal parou de se olhar e olharam para aquela bagunça, o rapaz perto da porta esqueceu a morena do lado de cá e arrancou uma barra do teto e estourou o vidro da janela, o fiscal apitou, entraram dois rapazes e parece que já estavam combinados com o de perto da porta que não olhava mais a morena nem queria ir a lugar algum, e os três acenderam um fósforo debaixo do banco…

E eu?

Bem, já disse uma vez aqui no Universo Jatobá (1) que eu era um tipo meio que quase autista. Pois bem, a certa altura um rumor diferente invadiu meus ouvidos e me fez contatar aquela realidade estranha. Pessoas até então pacatas pendurando-se no teto do ônibus e chutando os vidros das janelas, distintas senhoras mães de família acionando histericamente a campainha, gritos de socorro, fogo! Que povo mais maluco! Tudo por causa de um cigarrinho mais demorado?

(1) – A professora de piano

 

Pagan Senior é engenheiro civil, com atuação institucional na área de Coleta Seletiva e Reciclagem na Cidade de São Paulo. É também ator diletante.

Pagan Senior escreve às quintas-feiras aqui no Universo Jatobá.

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