Ujatoba_bola_shakespeare

Batendo bola com Shakespeare

por Pagan Senior

Capivara é, em linguagem policial, a relação de crimes de uma pessoa. A de Ricardo III era extensa e composta de falsificação de documentos, rapto e cárcere privado de seus sobrinhos, mandante de assassinato (de seus irmãos e sobrinhos), conspiração, formação de quadrilha, corrupção de menor, apenas para ficar-nos mais evidentes.

Diante dessa “folha corrida” sua própria mãe, a Duquesa de York, mortificava-se por tê-lo parido e lançava maldições a tal “javali sanguinário”. Isto tudo em Ricardo III, a última tragédia de Shakespeare. E com essa bagagem em mente atendeu o telefonema do Anselmo, que o convidava para jogar futebol no clube de campo com o pessoal do trabalho dele.

Alto, forte e novato na turma, foi mandado para jogar no gol, com a promessa de ir revezando. Nada mais justo, mesmo porque essa era uma situação conhecida na sua “carreira”. Irmão mais novo sempre acaba jogando de goleiro, a mais maldita das posições do futebol.

Bolaprácá, bolaprálá, não tinha como não perceber que o jogo tinha um dono: Enzo. – Centra!; – Passa!;  – Volta!; – Prá mim, seu idiota!; – Não, cara, assim não!

Enzo mandava e desmandava nos companheiros de camisa e mesmo nos adversários: – Para tudo, foi falta! Eu que bato!

Jogava bem, mas mandava melhor. E ninguém discutia. Aos seus berros, baixavam a cabeça e se fechavam. Até aí tudo bem, afinal como um simples convidado, não tinha do que se queixar?

Mas a coisa começou a pegar nas divididas. Vinha driblando, alguém lhe tomava a bola, sobrava seu joelho na coxa do adversário; atrasava numa dividida, dá-lhe sola na canela.

Aquilo começou a irritar: – É jogo entre amigos, pra que isso?, comentava com o zagueiro. Saltava para cabecear, cotovelo no pescoço do adversário: – Porra, esse cara é muito violento! Parece um…

O zagueiro, quieto, só concordava com a cabeça. E a relação de seus crimes começou a desfilar diante de seus olhos: seu pobres sobrinhos presos na torre e depois eliminados por assassinos de aluguel…

O atacante veio com a bola, passou por um, passou por dois, chegou no Enzo. Sem nem vacilar, Enzo mete-lhe o joelho no estômago. Os outros iam reclamar, ele sai de banda: – Bate a falta e não enche o saco, pô!

Lá no gol, o convidado começa a andar de um lado pra outro. Seduziu a viúva de sua vítima na hora mesmo de seu enterro;  depois mandou mata-la, lembrou-se: – Não é possível, ninguém faz nada com esse, esse… javali sanguinário?

Outra vez de joelho, só que agora nas costas do infeliz do zagueiro, que tentava cabecear para afastar um cruzamento: – É demais! Troca comigo. Fica no gol que eu me entendo com o tal do Enzo!

– Não, deixa prá lá, ele é assim mesmo.

– Não, não, deixa eu jogar um pouco; fica no gol.

Veio a calhar. Lá vinha Enzo passando por um, por outro. Pensou: “Desgraçado, exigiu a cabeça do primeiro ministro por ter hesitado em aprova-lo em mais uma chacina…”.

Com uma mão no rosto, afastou o terceiro.
Continuou: “Quer desgraçar a vida da sobrinha. Vem vindo, vem vindo, que agora eu te pego!”.

E foi bem no meio! A sola na canela, o joelho nas partes baixas, o encontrão do punho na boca do estômago, o cotovelo na costela e o javali sanguinário desabou com um baque surdo no chão de terra. Os olhos esbugalhados não acreditavam no que estava acontecendo, além da dor de cima abaixo: – Ei !!!!, que qué isso!!!

O convidado já tinha se afastado, como se nada tivesse acontecido, e mediante este grito voltou-se e veio caminhando lentamente em direção ao Enzo, que permaneceu deitado, apoiado no cotovelo e ainda com expressão de dor, uma das mãos na boca do estômago:

– Você se queixa, seufilhodaputa, assassino? Não contente com todos seus crimes já por demais conhecidos, ainda vem aqui, num jogo entre amigos e  sai batendo em tudo e em todos, por cima e por baixo, nunca vi tanto maucaratismo! Tua própria mãe se envergonha de tê-lo parido!!! Javali sanguináááário!!!

Isso foi o que rolava dentro da sua cabeça. Mas para fora foi muito pior, pronunciado sílaba por sílaba:

– SEU-MA-RI-CAS!!!! – acompanhado de um dedo indicador apontando o meio da cara do Enzo.

O que? Maricas? De onde surgiu isso? Maricas? Há séculos ninguém xingava ninguém de “maricas”!!! Com todo um arsenal de coisas que podiam ser atiradas no Enzo deitado, maricas?!? Ninguém piscou um olho, ninguém mexeu um dedo. O tempo parou e foi se esticando, esticando. O convidado virou as costas e foi-se embora; o Enzo levantou-se devagar e foi-se embora.

Dia seguinte Anselmo liga: – Cara, você é uma celebridade e eu por tabela. Você fez o que todo mundo gostaria de ter feito!!!

Muitos anos se passaram quando eles se encontraram de novo. Ninguém reconheceu ninguém assim, em roupas sociais. Em casa, examinou o cartão.

Enzo Javali – diretor

 

Pagan Senior é engenheiro civil, com atuação institucional na área de Coleta Seletiva e Reciclagem na Cidade de São Paulo. É também ator diletante.

Pagan Senior escreve às quintas-feiras aqui no Universo Jatobá.

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