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A professora de piano

por Pagan Senior

Não, não vou escrever uma resenha sobre um filme, mas vou explorar um momento da minha vida que me retornou à memória por força da crônica que escrevi algumas semanas atrás e que foi publicada aqui com o título Acreditei ¹.

Por alguma razão da qual não me lembro, minha mãe resolveu me levar para ter aulas de piano. Batemos à porta da Dona Alice –aquela entre a bomboniere da Dona Cecília e a loja de tecidos do Nicolau – e ambas conversaram durante alguns minutos. Só ouvi o final, acompanhado de uma “espanada” no meu cabelo:

– Então vamos deixar ele crescer mais um pouquinho!

Meio autista que sempre fui, nem perguntei o que isso queria dizer, só entendi que eu não iria ter aula de piano, assim como também nem sabia direito de onde vinha aquela ideia. Eu, que me lembrasse, não tinha falado nada.

O fato é que naquele mesmo dia, estava eu aboletado em cima da geladeira tentando desmontar o relógio que existia na barriga de um pinguim de louça, quando minha mãe anunciou:

– Vamos?

–Aonde? – perguntei.

–Pra aula de piano, oras!

–Mas eu jáááá cresci? A resposta foi um sorriso benevolente e mais uma espanada no meu cabelo. Nossa, com a gente cresce depressa, pensei, enquanto ia sendo arrastado pela mão.

Dona Alice me recebeu com muito carinho, solfejos e, principalmente, um bom pedaço de bolo ao final da aula. Adorei esse ritual e a cada dia de aula eu ia alegremente pela rua (naquele tempo podia-se andar sozinho, mesmo sendo criança) e esperava ansioso pelo final, o bolo.

Aconteceu que lá pela sétima ou oitava semana quando cheguei para a aula, a casa dela estava lotada de gente. Seu pai tinha morrido. Pedi para ver. Ela, carinhosa, me ergueu e pela primeira vez vi um morto. Achei bonito, todo florido… só fiquei pensando pra que será que ele precisava de sapato. Ela me mandou embora e voltei na semana seguinte. Quase não reconheci Dona Alice, toda de preto, pálida. Tudo nela era triste: o cabelo, os olhos, a pele, a roupa. Mas isso não me comoveu, pois ao final da aula esperei pelo ritual de costume, pelo bolo que ela demorava a me trazer. Me impacientei:

– Dona Alice, onde está meu bolo?

– Hoje não tem, eu não fiz.

– Não feeeeez?

Ali terminou minha promissora carreira de pianista. É tudo muito nebuloso – afinal eu tinha sete ou oito anos – mas parece que a discussão foi se acalorando, eu indignado com a falta do bolo, ela indignada com a minha indignação, e a temperatura foi subindo e parece que eu gritei com ela e parece que ela não gostou e… me “acompanhou” até a porta me conduzindo com uma mão nas minhas costas. Parece que o meu empurrão de volta não foi tão delicado.

Realmente é tudo muito nebuloso mesmo, mas parece que minha mãe concordou comigo em relação à velocidade de crescimento e chegou à conclusão que eu ainda não tinha crescido o suficiente. Parece.

(1) – Acreditei. Crônicas da Vida de 14/03/2013

 

Pagan Senior é engenheiro civil, com atuação institucional na área de Coleta Seletiva e Reciclagem na Cidade de São Paulo. É também ator diletante.

Pagan Senior escreve às quintas-feiras aqui no Universo Jatobá.

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