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A cereja do bolo

por Pagan Senior

É quase natal, quase fim de ano, época de happy-hours e encontros há muito adiados. Barzinho movimentado, burburinho de vozes, tilintar de copos e talheres, “vivas” e “à saúde”, risadas e gargalhadas. À frente, a amiga de longa data e a taça com o Martini e sua indispensável azeitona no palito.

Nunca me decidi se a azeitona é a cereja do bolo do Martini ou não. E se for, o negócio é abocanha-la logo ou deixa-la para o fim? Bela pergunta. Aliás, o ser humano é o único que tem a capacidade – ou ideia maluca – de guardar o melhor para o final. Meu cachorro não tem a menor sombra de dúvida: ataca primeiro o que mais lhe apetece e só come o resto se ainda restar fome. Mas enquanto espero o final pra comer o melhor, deixo a azeitona dentro da taça e me espeto o nariz a cada gole ou fico segurando o palito???

A conversa versava sobre nossos namorados, claro, suas incoerências, insuficiências, incompetências, mas também claro, uns fofos que nos tratavam a pão de ló e que não trocaríamos por nada desse mundo. E de novo olhei a azeitona no palito e me questionei em que momento decidiria que chegou o momento dela, já que, definitivamente, não iria ficar segurando aquele ridículo palito o resto do fim de tarde…

E meu animado  sorriso  de social simpatia de repente congelou. Mais além do palito, da azeitona,do Martini e da minha amiga; através do ar denso de fumaça (quando ainda se fumava em bares), dos ruídos e da distância, vi. Ele, o tal fofo que eu não trocaria por nada desse mundo, sua nuca inconfundível, sua curvatura das costas igual a só ele mesmo, seu redemoinho característico na cabeleira… no andar de baixo do bar, na mesa da entrada, todo adocicado e babado por uma loira lambida com cara de lambisgoia, segurando-lhe as duas mãos e falando-lhe alguma idiotice babaca.

Todo ruído se congelou num silencio barulhento, meus músculos das pernas se retesaram e me levantaram. Minha mão continuou segurando a taça, a outra o palito. Minha amiga deve ter me olhado e talvez até seguido meu olhar, não sei. A cadeira atrás de mim caiu com o impulso do meu levantar. Catatônica, me dirigi à escada. Cada degrau era um gradiente no meu pulsar.

Meus ouvidos latejavam ao som dos tambores do meu coração. Não errei nem um degrau. Não dei passagem a ninguém, que se danassem! Me desviei de umas mesas, esbarrei em outras, me vi de frente à lambisgoia que ergueu seu olhar idiota e deixou o queixo cair. Estava atrás dele. Minha mão, a da taça, sem qualquer comando, começou a entortar-se e o líquido a aproximar-se da borda. Continuei a olhar a loira que, mais e mais, abria a boca, incrédula.

Uma faísca de dúvida saltou e estranhou o paletó. Não me lembrava dele. Mas a mão, a da taça,  não hesitou. Na hora H ouve um “urra!” dentro daquele silencio sepulcral. Firme, verteu o Martini sobre a cabeça do fofo, que, olhos pregados na lambisgoia loira, esperou o fim até o fim, sem um único movimento. Ou melhor, só levantou os ombros, esperando o fim.

E o fim chegou. Esperou os últimos respingos, sentiu o líquido frio lhe esfriando a espinha enquanto descia costas abaixo… Levantou-se devagar, guardanapo na mão  e virou-se mais devagar ainda. O bar era um cemitério de tão silencioso. A expectativa era densa. Olhou para mim, olhei para ele. Como assim? Como assim? Não era ele!

Meu espírito de improvisação pensou rápido. Já sei: vou perguntar as horas!!! Ridículo, perguntar as horas a alguém que você não conhece e acaba de lhe derramar um Martini na cabeça e no paletó e na camisa e na calça (também não reconheci a calça)  em frente à lambisgoia namorada quase noiva, loira???

Olhou-me no fundo dos olhos e senti quando sua mão deixou o guardanapo na mesa. Fez-se um vento e senti esse vento chegando e de repente o vento estalou e percebi quatro dedos se afundando na minha bochecha esquerda e esta indo de encontro aos meus dentes e percebi a mão indo embora junto com o Óóóh que chegava de todos os lados e meus cabelos indo embora para a direita e caindo de novo sobre os ombros quando meu rosto voltou ao lugar.

Agora sim fez-se silencio de verdade. Frente a frente, olho no olho. Sempre me orgulhei de ser uma pessoa justa; Fiz minhas contas e, recuperada, selei:

–  Estamos quites!

Dei meia volta e subi para o mezanino onde minha amiga ainda tentava se recuperar. Perguntei:

– Você viu minha azeitona?

 

Pagan Senior é engenheiro civil, com atuação institucional na área de Coleta Seletiva e Reciclagem na Cidade de São Paulo. É também ator diletante.

Pagan Senior escreve às quintas-feiras aqui no Universo Jatobá.

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