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O que é ser normal? – Parte 2

por Dolores Affonso

Na primeira parte  desse artigo, eu perguntei o que é ser normal para você. E então, chegou a alguma conclusão?

Segundo Verani (2013), a negação da diversidade é algo comum entre os povos. A consequência disso é a incompreensão, os conflitos e até mesmo a negação da condição humana a outros povos, como, por exemplo, a escravidão indígena, de negros, a exterminação de judeus, ciganos, homossexuais etc. “A esta atitude a antropologia chama de “etnocentrismo”, […] de valorizarem ao máximo como as melhores, as mais corretas, suas formas de viver; agir; sentir e pensar coletivamente.”

Por extensão, algumas famílias que possuem Pessoas com Deficiência (PcDs) ou Necessidade Especiais (PNEs) em seu seio tendem, no início, a não acreditar e a negar a situação. Já ouvi de pais de crianças com deficiência coisas do tipo: “meu filho é especial”; “meu primeiro filho tem problemas, mas o segundo, graças a Deus, é normal”; “minha filha é cega, mas consegue fazer a lição sozinha” etc. São expressões claras do medo, da negação, do preconceito e da pressão que vivem perante uma sociedade que exige a perfeição, a “igualdade” e a “normalidade”, excluindo os diferentes.

Muitos acreditam ser um castigo Divino ou algo do gênero que faz com que seu filho ou filha jamais tenha a condição de reproduzir a pessoa “perfeita” que era esperada para vir ao mundo, um reflexo de seus pais “perfeitos”, uma família “perfeita” sendo, em tese, incapaz de vencer qualquer competição familiar ou na sociedade. Mas será que há, em alguma família, um ser perfeito? Pode não ter um “defeito” aparente, como uma deficiência motora, auditiva, visual, intelectual, mas com certeza lá no fundo, se formos procurar, encontraremos limitações em diversos campos, como afetividade, relacionamento, comunicação ou disciplinas gerais como matemática, ciências etc. De uma forma ou de outra, cada um de nós traz em si inteligências, habilidades, competências e limitações. Gardner (2000) afirma que possuímos múltiplas inteligências (linguística, interpessoal, intrapessoal, lógico-matemática, musical, espacial e corporal-cenestésica) e cada ser humano apresenta níveis diferentes de competência em cada uma delas.

Em muitas culturas nômades, os deficientes “defeituosos” eram mortos ao nascer por acreditar-se que atrasariam e atrapalhariam o restante do grupo. O que me lembra muito as colocações de alguns pais durante uma palestra em uma escola: “mas esse menino é retardado e vai atrapalhar a turma… vai atrasar meu filho”. Ouço inclusive dos pais de crianças com deficiência que consideram “melhor a educação em escolas “especiais” onde podem conviver com crianças iguais a ele”. Essa atitude é reflexo do medo de que seu filho sofra, seja humilhado e relegado a ser menos do que os outros. A meu ver, todas as crianças são iguais, portanto, devem estudar juntas, aprendendo a conviver com as diferenças desde sempre e contribuindo cada uma a seu tempo e com suas inteligências para uma aprendizagem colaborativa e significativa.

Algumas culturas antigas também matavam os diferentes, pois achavam que eram amaldiçoados. Até alguns séculos atrás, isso ainda acontecia e as famílias precisavam manter seus entes queridos escondidos. E muitos desses conceitos, apesar de modificados, ainda permanecem em nossa sociedade.

Diversos são os casos em que, após uma “tragédia”, um acidente, doença ou algo que torne uma pessoa antes “normal” em deficiente, a visão de mundo e da vida mude completamente e de forma radical. Essas pessoas mudam de vida pelo fato de enxergarem a situação por um outro ângulo. Depois do impacto inicial, percebem que a vida pode ser plenamente vivida se encontrarem as ferramentas certas que lhe proporcionem igualdade de condições. Com o tempo, as famílias caem em si por força das circunstâncias e pensam “o que não tem remédio, remediado está”. Como dizia minha avó! Deste ponto em diante, buscam meios de facilitar a convivência de seus entes queridos no ir e vir, no crescimento pessoal e profissional com todas as suas forças, lutando pelos direitos garantidos na Constituição Federal, direitos esses que o governo vem prometendo há muito tempo colocar em prática, mas falta vontade política e social em todos os sentidos.

Quando essas famílias começam a adaptar a casa, o carro, a vida deles para seus filhos, pais, maridos, esposas etc. elas sabem que os estão incluindo e vibram com cada vitória, cada nova conquista que ajuda a superar um obstáculo antes intransponível, permitindo assim que vivam suas vidas como pessoas “normais” que são. Com deficiências, limitações, dificuldades, sim, e com sonhos, pesadelos, angústias e prazeres, como qualquer outra pessoa. Quem convive com pessoas com deficiências ou necessidades especiais logo percebe que existem as dificuldades, como para qualquer outra pessoa, mas, com o tempo, tudo se encaixa perfeitamente de forma que não chama mais a atenção o fato de ser ou não deficiente; em outras palavras, restabelece-se a “normalidade”, temporariamente perdida não por causa da deficiência, mas sim pela hipocrisia de uma sociedade que se diz “perfeita” e “normal”, escondendo debaixo do tapete suas deficiências e limitações. Neste contexto, a falta de conhecimento dos pais e parentes, professores, amigos, chefes/patrões etc. em relação a como tratar as pessoas com deficiência e como adaptar a vida ao redor para que tenham as mesmas condições que qualquer outra pessoa dificulta e atrasa o processo.

É claro que essa “normalidade” conquistada em casa não vem com facilidade. Na maioria das vezes, há conflitos, o que acontece em qualquer família, independentemente de haver deficiência aparente ou não, havendo até uma tendência à superproteção, o que acaba por sufocar suas habilidades, ressaltando apenas as limitações.

Outro ponto que me deixa curiosa é a questão da “generalidade dos casos”, ou seja, normal seria a maioria. No início deste artigo, comentei sobre as definições do dicionário e volto a uma delas. No contexto atual do Brasil, segundo o Censo 2010 do IBGE, a situação de “normalidade” imaginada e mantida hoje se inverteria, tendo em vista que existem no Brasil 45,6 milhões de pessoas com deficiência e somados a elas as pessoas com necessidades especiais, idosos, disléxicos, gagos e tantos outros grupos que não são considerados como deficientes, mas também não são “normais” diante da métrica assumida em nossa sociedade, a soma passaria facilmente dos 50% da população, tornando-se, portanto, a maioria, (IBGE, 2010) Neste novo contexto social, o “normal” de hoje deixaria de ser o “modelo de certo”, passando a ser considerado “normal” os “anormais”, os “diferentes”, os “incompletos”, os “defeituosos”, os “aleijados”. Isso seria uma afronta à nossa sociedade, mas se a questão se resume à maioria, então é preciso rever quem é maioria em nosso país e, para isso, basta fazer as contas.

Diante dessa realidade, a diversidade diz respeito às diferenças e sua importância para uma convivência pacífica. A diversidade é a construção histórica, cultural e social das diferenças. Portanto, compreender e respeitar as diferenças é respeitar o outro. E este é o principal objetivo de nossa coluna, a inclusão.

Quando a sociedade conseguir colocar em prática as políticas públicas de inclusão de forma ampla e irrestrita, teremos o fim do termo “inclusivo”, pois já haverá a integração esperada e tão sonhada de todos os deficientes. Enquanto isso não acontece, será necessário um constante debate entre a sociedade, composta principalmente pelos grupos excluídos, aqueles que lutam pela inclusão e os governos municipais, estaduais e federal no sentido de encontrar as soluções para diminuir as distâncias entre a educação regular e a educação especial, entre o mercado de trabalho somente de preenchimento de cotas e o mercado de trabalho com vistas à progressão na carreira e a realização profissional; em outras palavras, é necessário mudar a mentalidade da população para que as PcD/PNEs sejam vistas não como os “coitados” que pedem uma chance para mostrar seu valor, mas sim como cidadãos que podem e devem contribuir para a construção da sociedade de forma plena e feliz, lutando pelos seus direitos e cumprindo com seus deveres como qualquer pessoa.

Com deficiência visual, Dolores Affonso é coach, consultora, professora, palestrante e empresária. Formada em Administração de Empresas com MBA em Marketing pela FGV. É especialista em Marketing, Design Instrucional, Ensino a Distância e Educação Especial e Inclusiva. Consultora em acessibilidade e Professora na Fundação Getúlio Vargas. Idealizadora do 1º Congresso de Acessibilidade gratuito e online do Brasil. Diretora-proprietária da Affonso & Araujo Consultoria, que atua, desde 2003, na implementação de projetos de inclusão de pessoas com deficiência.

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